Série de Entrevistas- dra.MARIA CAPUCCI e dr.TADEU BADARÓ

3 de dezembro de 2024

 

“A supremacia tem que ser a do interesse coletivo, da coisa pública, que é de todos.”

A IlhaMuseu inicia uma série de entrevistas com diversos moradores do Litoral Norte de São Paulo, com o objetivo de dar continuidade ao desenvolvimento do seu Plano de Comunicação e buscar envolver-se cada vez mais no território. A série visa apresentar a multiplicidade de vozes que compõem a ecologia de saberes da região. Queremos saber das suas trajetórias de vida; das suas perspectivas e preocupações sobre o lugar que escolheram para viver; dos seus sonhos e desejos de futuro.
Escolhemos iniciar a série com aqueles que possibilitaram a retomada da Ilha das Cabras e impulsionaram a implementação do Projeto IlhaMuseu, em parceria com a UNESCO, Fundação Florestal e demais instituições parceiras, além de diversos outros agentes públicos e da sociedade civil.

Para isso, a jornalista Paulina Chamorro, consultora da IlhaMuseu para Comunicação Estratégica, entrevistou Maria Capucci, Procuradora do Ministério Público Federal; e o Promotor de Justiça Tadeu Badaró, do Ministério Público de São Paulo. Os dois atuam nos municípios de Caraguatatuba, Ubatuba, Ilhabela e São Sebastião e nos proporcionam, com esta entrevista, uma aula magna sobre o real significado do Direito Republicano: “garantir a todos, aquilo que é de todos”. Para Capucci, perseguir esse princípio é garantir o real cumprimento da nossa Constituição.
Ao capitanearem a luta pela retomada da Ilha das Cabras — um espaço público que esteve nas mãos de ocupantes privados por mais 30 anos —, Capucci e Badaró travaram verdadeiras batalhas judicial e extrajudicial com o poder político e o poder econômico, e foram vitoriosos. Na realidade, a partir das suas narrativas, podemos concluir que foi vitoriosa toda a sociedade brasileira, pois tornou a Ilha das Cabras um símbolo de um dos direitos de cidadania mais importantes da nossa Constituição, que garante que o patrimônio público seja utilizado para fins públicos.


Para Badaró, é fundamental transformar a Ilha num espaço de visitação pública, que possa contar essa história e falar da importância do coletivo, em detrimento do individualismo que prevalece em nossa sociedade. Para isso, propôs transformar a Ilha das Cabras num museu, no qual o protagonismo estará nas comunidades tradicionais do Litoral Norte de São Paulo — indígenas, quilombolas e caiçaras. A partir do conceito de ‹‹Res Publica››, que significa coisa pública, o museu deverá priorizar as histórias e as memórias dessas comunidades, com o objetivo de nos fazer refletir sobre as suas relações com o território onde vivem. “O que cada um desses povos pode nos ensinar sobre a ideia da supremacia do coletivo sobre o particular?” Esta é a principal expectativa desses guardiões da Constituição brasileira com a criação da IlhaMuseu.

Paulina – Por que vocês escolheram estar onde estão agora? A profissão de vocês?

Maria Capucci – Eu sempre eu tive como inspiração meus pais, que trabalharam e trabalham até hoje com os povos indígenas, então eu sempre acompanhei a luta desses povos por reconhecimento de direitos, principalmente por reconhecimento de direitos territoriais. E durante esse trabalho deles, eu acompanhava justamente a importância que o Ministério Público Federal tinha nessa luta. O Ministério Público como um todo, mas relacionado aos povos indígenas é, principalmente, o Ministério Público Federal. E aí, desde então, eu decidi que faria Direito porque eu queria ser Procuradora da República, para poder trabalhar na defesa dos direitos desses povos e das comunidades tradicionais e, obviamente, também de todos esses direitos que são relacionados à vida desses povos. E aí entra a questão ambiental, a preservação e a defesa dos recursos naturais.

Tadeu Badaró – Para mim foi uma coisa gradual. O Direito foi por influência da família também. Depois que eu comecei a fazer Direito, fiz estágio em alguns lugares. Quando fiz no Ministério Público, eu me apaixonei e decidi que queria seguir carreira nessa instituição, principalmente pela liberdade de poder aplicar o meu conhecimento naquilo que eu acredito. E depois, já como Promotor de Justiça, tive contato com a área ambiental e também entendi que ali era uma possibilidade de defender interesses coletivos, difusos, de todo mundo, como a questão ambiental, que pertence a toda sociedade. Achei que ali fazia sentido a minha atuação e me especializei.

P – Há séculos, no Brasil, que o tema principal é território, é o direito ao território. Como é que vocês explicariam pra gente essa história, aqui no Litoral Norte?

M – Eu vejo a história do Litoral Norte como uma continuidade. O mesmo processo que se deu em todo o país. Em determinado momento, veio a Lei de Terras, que dizia que quem ocupava o território não era o seu dono. O dono era quem registrava. Era quem tinha o registro. E a partir daí, pessoas que tinham acesso a essa informação, a esse conhecimento, que circulavam nesses meios, que são os meios onde se fazem as leis; onde se executam as leis; onde se julgam as leis. Com acesso a essa informação, passaram a registrar diversos títulos em cima de territórios em que viviam outras pessoas. E a partir daquele momento, o dono da terra não é mais quem vive na terra, mas é quem registrou aquela terra no seu nome. Então, o histórico fundiário do Brasil é um histórico que necessariamente ia trazer como consequência esse cenário que a gente vê hoje. De uma disputa pela terra. De pessoas que têm o título, mas não têm a legitimidade da ocupação na terra. Outras pessoas que estão na terra há muito tempo, mas que por não terem o seu título, acabam sendo expulsas. E esse conflito no Litoral Norte acabou sendo incrementado com a especulação imobiliária. A gente tem aqui um processo de especulação imobiliária muito grande. É uma área que tem poucos espaços disponíveis para ocupação, pela própria geografia do local, pelo fato de ter uma diversidade muito grande de espaços protegidos. E tem muitas pessoas, de diferentes setores, por diferentes razões, que procuram ocupar esse mesmo território. Então realmente a disputa aqui é muito grande.

P – Também relacionado às comunidades tradicionais que a gente tem aqui, vinculadas à cultura e ao modo de vida no território. A gente tem uma diversidade cultural que está muito associada à biodiversidade do Litoral Norte. Como é que acontece esse impacto? Como você enxerga esse impacto para essa população?

Tadeu – Eu vou um pouco na linha da Maria. Eu acho que esse processo de ocupação do território, aqui no Litoral Norte, se confunde com o processo histórico de ocupação do território brasileiro. É a partir da chegada dos europeus, com uma visão muito diferente daquela que os povos originários tinham sobre o território, sobre a relação com a natureza. Havia uma ideia de pertencimento do ser humano dentro do ambiente natural, numa quase unidade. Não havia essa dissociação entre o ser humano e o ambiente que o cercava. E aí chegam os europeus, com uma visão diferente, particularmente aqui no território brasileiro, enxergando a natureza como algo que oferece bens materiais para serem explorados comercialmente e dali extrair riqueza. Então é uma visão bem diferente, uma visão que separa o ser humano da natureza. E a relação com o território também é uma relação de apropriação privada, de apropriação individual, muito diferente da relação dos povos originários, que tinham uma relação mais coletiva com o território. Então, esse choque cultural vai gerar uma série de problemas que a gente traz até hoje, que acho que está muito ligado a essa dificuldade de entendermos que o ambiente que nos cerca é parte de nós.

P – A gente vai partir para um exemplo muito emblemático, que é justamente a Ilha das Cabras, sobre tudo o que a gente está falando. Eu queria que vocês falassem qual é o papel do Ministério Público Federal. Qual é o papel do Ministério Público Estadual em casos assim, para a sociedade. Qual é a função?

Maria – A Constituição Federal de 1988 atribui para o Ministério Público o principal papel de guardião da própria Constituição. Então, ela estabelece uma série de direitos, uma série de instrumentos para garantir esses direitos. Ela desenha uma estrutura de Estado, no qual o Estado é o principal prestador de serviços fundamentais, a garantir os direitos fundamentais. O Estado é também o regulador daqueles serviços que ele não presta. Ele regula a ordem econômica e presta serviços, como saúde, educação, segurança pública. Cabe ao Ministério Público fiscalizar o cumprimento da implementação da Constituição. Então, quando há direitos que não estão sendo observados, quando há garantias que não estão sendo eficazes, cabe ao Ministério Público intervir, atuando no Poder Judiciário ou mesmo extrajudicialmente, fora das ações dos processos, para poder garantir o cumprimento daquilo que está previsto na Constituição. Isso, principalmente, quando se fala em direitos coletivos. Então, o Ministério Público atua na defesa desses direitos, que são de uma coletividade. E aí entra a questão do meio ambiente, dos povos e comunidades tradicionais, do consumidor, dentre outras. Mas também atua na defesa de direitos que a gente considera direitos indisponíveis, como a saúde e a vida. Então, ainda que seja um direito individual, mas é um direito individual indisponível. Eu não posso dispor do meu direito à vida ou do meu direito à saúde. Então, este é o papel do Ministério Público.

P – Vamos para o caso emblemático da Ilha das Cabras. Digo que é emblemático porque foi palco de uma apropriação e hoje está num outro processo de devolução para a sociedade. Então, Tadeu, eu queria que você contasse o início dessa história, quando que vocês começaram a olhar para esse caso, prestar atenção e dizer: “isso precisa voltar para a sociedade”?

Tadeu – o papel do Ministério Público é defender o interesse da sociedade e da coletividade. Isso é representado pela ideia do princípio Republicano, que é um dos pilares da Constituição Federal brasileira. A sociedade tem que ser estruturada, a partir da ideia de que a supremacia tem que ser a do interesse coletivo, da coisa pública, que é de todos. Uma sociedade só pode funcionar, se a gente entender que tem que funcionar para todos. Esse caso da Ilha das Cabras é muito emblemático dessa ideia. Isso sempre chamou atenção, para mim, para a Maria e para todos que partilham dessa ideia, de que o nosso papel fundamental é defender esse princípio Republicano, porque a Ilha é um cartão postal daqui da região. A gente sempre que passa pela balsa, a gente enxerga. Então aquilo era uma violação, com a qual a gente se deparava diariamente, quando a gente via aquela Ilha que pertence a uma Unidade de Conservação. Fala-se que o meio ambiente é de todos e que as Unidades de Conservação têm o propósito de proteger os recursos naturais, pelo bem de todos. Então, era uma ilha dentro de uma Unidade de Conservação e que é Patrimônio da União, portanto, um patrimônio de toda a sociedade; mas que estava sendo utilizada privativamente e excluindo todas as demais pessoas da sua visitação. Fez isso de forma ilegal, desrespeitando a legislação ambiental; desrespeitando as normas municipais; desrespeitando decisões judiciais. E feito por uma pessoa que se valia de um cargo público — que deveria ser usado em benefício de toda a coletividade —, para evitar justamente a aplicação da lei, gerando um problema evidente em nosso país, de que a lei aqui não se aplica a todos. Então tinha todos esses simbolismos. E isso nos incomodava. Incomodava o Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal. A gente tinha um colega aqui, da Justiça Federal, que dava aula aos seus alunos e explicava que as Ilhas pertenciam a União e os alunos sempre diziam: “mas, e a Ilha das Cabras?” Embora a gente sempre soubesse que, além da Ilha das Cabras, existiam outros tantos espaços públicos que foram indevidamente apropriados para uso privado, a gente infelizmente não tem condição de atacar todos esses problemas, ao mesmo tempo. Então, a gente apostou nesse simbolismo da Ilha das Cabras, por todos esses fatores, entendendo que valia a pena um esforço para recuperar esse espaço público e devolver para toda a sociedade.

P – E aí a dupla começou, nesse caso? Como e quando começou essa história e a partir de que pontos vocês pegaram, na atuação de cada um, pra começar essa devolução para a sociedade da Ilha das Cabras?

M – Acho importante a gente lembrar que, antes da gente atuar nesse caso, outros colegas atuaram. Então, mais que tudo, essa é uma atuação institucional. Esse caso tem 35 anos de atuação, mais ou menos, não é, Tadeu?

T – A ação é de 1991, e o primeiro embargo é de 1989.

M – E antes mesmo do Ministério Público atuar nesse caso, o Estado, por meio do município, por meio da própria Secretaria do Patrimônio da União, já havia atuado. Então, quando começou um processo de ocupação; quando começaram algumas construções que estavam irregulares, houve um embargo dessas atividades. Antes da provocação do Poder Judiciário para resolver isso, houve uma tentativa de solução extrajudicial. Esses embargos não foram respeitados; essas notificações não foram atendidas. E aí então, houve uma ação ambiental pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e, paralelo a isso, considerando que a Ilha é um bem da União, também houve uma atuação do Ministério Público Federal para a desocupação da Ilha. Então, foram duas ações paralelas: uma com foco na recuperação ambiental, daquilo que tinha sido degradado, pelas diversas intervenções irregulares que tinham sido feitas; e a outra, era justamente com o fundamento da ocorrência do dano ambiental, a desocupação da área. Porque existe uma regra que determina que, se houver dano ambiental numa ocupação de um bem da União, a pessoa que ocupa aquele bem, perde o direito de ocupar. Então, com base nessa ação ambiental, a SPU determinou a desocupação da Ilha das Cabras. E aí, não houve o atendimento dessa determinação de desocupação e o então ocupante entrou com um mandado de segurança para permanecer ocupando a Ilha. E esse mandado de segurança ficou durante muitos anos no STJ. Ele foi subindo as instâncias e parou no STJ, com uma liminar que garantiu a permanência do ocupante na Ilha das Cabras. Então, a atuação passou a se dar na ação ambiental, que ainda estava aqui; e numa ação do Ministério Público Estadual, que teve todo um processo também. A própria ação foi bastante tumultuada e talvez seja até interessante contar um pouco dessa história, o Tadeu atuou nessa ação. Paralelo a isso, o MPF foi acompanhando esse mandado de segurança para desocupação, para reverter essa decisão que teria permitido que ele continuasse ocupando. No curso de todo esse processo, também houve uma ação, uma operação criminal que envolvia justamente a ilha das Cabras e uma outra ilha aqui no litoral de São Paulo, que é a Ilha de Bagres, no porto de Santos, e que também era ocupada pelo mesmo grupo. Essa operação identificou uma série de desvios de atos administrativos, justamente para beneficiar os ocupantes, para que se mantivessem nessas Ilhas. Foi uma operação grande, chamada Porto Seguro. Então, além da ação ambiental e da ação patrimonial para desocupação da Ilha, houve uma investigação criminal, que foi essa Operação Porto Seguro, e também uma ação por improbidade administrativa, porque dentro dessa operação se identificou o envolvimento de diversos agentes públicos, inclusive do alto escalão do governo, para beneficiar os ocupantes, para que se mantivessem ocupando essas Ilhas. Então foi todo esse contexto, que não surpreendia, mas que causa perplexidade. Não surpreende porque, infelizmente, isso é a tônica do país. Não é só aqui. A Ilhabela não é a única em que acontece essas coisas, mas causava um incômodo muito grande, tanto no Tadeu, nas nossas conversas, quanto com esse colega, que trabalhava também na Justiça. A população em geral sempre questionava isso. E aí, a gente falou: “a gente precisa atuar! É óbvio que isso não vai resolver o problema do país, mas a gente precisa mostrar que é possível”. Porque, senão, seríamos vencidos por essa sistemática violação do Direito, da Constituição. Nós seríamos vencidos pelo poder político, pelo poder econômico. Então nós colocamos aquilo ali, como uma atuação muito importante, muito prioritária e muito simbólica, para o restabelecimento daquilo que a gente entende como fundamental na nossa República, que é o princípio republicano. E naquela mesma linha de garantir o acesso de todos à praia, a algumas praias que são privatizadas. Enfim, mas sempre com o olhar de garantir a todos aquilo que é de todos; e que a Constituição garante que é de todos. E nós, enquanto fiscais do cumprimento da Constituição, não poderíamos não enfrentar essa questão.

P – Dá alegria no coração ficar ouvindo isso. Da Justiça sendo feita, acontecendo. Então, Tadeu, conta o que aconteceu depois. Como é que se desenhou a saída do ocupante e esse caminho de devolução para a sociedade? Eu sei que você estudou Museologia, que tem toda uma ligação com a questão patrimonial e cultural. Então como é que aconteceu esse desenho para que hoje seja essa proposta da IlhaMuseu?

T – Essa ideia foi sendo gestada em vários momentos. A gente teve que recuperar todo esse histórico, para poder transmitir toda a gravidade do caso aos julgadores, para ir superando um a um os obstáculos jurídicos; vencendo um a um os recursos e as manobras jurídicas para garantir que a situação se perpetuasse como estava. Até que a gente foi chegando num ponto em que os recursos finalmente foram se esgotando, e não havia mais muito caminho para os ocupantes se manterem na Ilha. Cabia, então, executar a sentença. E a sentença determinava que fosse tudo derrubado e recuperado, por meio de um Projeto de Recuperação Ambiental. Mas nós entendíamos que aquilo não seria suficiente para restabelecer toda aquela violação. Que o importante seria a gente poder comunicar para toda a sociedade, tudo o que tinha acontecido e fazer o lugar irradiar valores opostos aos que ele sempre simbolizou. E aí veio a ideia de transformar num espaço de visitação pública, que foi construída a partir de muita discussão, com muitas pessoas. Tem a ver com um curso que eu fiz na Escola Superior do Ministério Público. Eu faço questão de mencionar, em função da pessoa que estava à frente da Escola nesse momento, que é o Dr. Marcelo Goulart, uma figura histórica no Ministério Público, que construiu um curso de especialização e capacitação dos membros, cuja premissa fundamental é fomentar o pensamento crítico e as práticas transformadoras. Então ele pedia que, no final do curso, a gente escrevesse um projeto. O meu projeto foi escrito em cima da história da Ilha das Cabras, com todas essas premissas, todas essas ideias que a gente está conversando. E a decisão coletiva, depois de muito diálogo, é que o ideal seria transformar num espaço de visitação pública, que pudesse contar essa história e que pudesse falar da importância da gente olhar para o coletivo, em detrimento desse individualismo que parece ter tomado conta da nossa sociedade nos últimos tempos. O nome do projeto é Res Publica, que significa coisa pública. A partir daí, veio a ideia de transformar num espaço de visitação pública, especialmente num museu que pudesse contar a história dos povos indígenas, quilombolas e caiçaras e também dos europeus que vieram para cá, dessa mistura, mas a partir dessa perspectiva: o que cada um desses povos pode nos ensinar sobre a ideia da supremacia do coletivo sobre o particular. Aí veio a ideia do museu. Mas para que se concretizasse, precisava de um entendimento entre vários atores. O Ministério Público do Estado de São Paulo, como autor da ação; o Ministério Público Federal, porque estava trabalhando a questão patrimonial, ou seja, de devolver aquilo para a União; a própria Secretaria de Patrimônio da União; a Fundação Florestal, já que a ilha está dentro de uma Unidade de Conservação, então, quem tem, por Lei, o direito de fazer a gestão dessa área é a Fundação Florestal; e o próprio réu da ação. Conversamos com todos os envolvidos e todos toparam a ideia. Agradecimento especial para a Fundação Florestal que, desde sempre, abraçou a ideia e viabilizou tudo o que era necessário para que ela de fato acontecesse. E aí conversamos com os representantes dos réus da ação, dizendo que os recursos esgotaram e o que cabe agora é executar a sentença, derrubar tudo e pagar uma indenização que era bastante significativa, em termos financeiros. Mas a gente tem a alternativa de não derrubar e manter essas estruturas que estão aqui construídas, para dar lugar a esse museu e usar esse valor da indenização para viabilizar esse projeto. E aí fizemos esse acordo judicial e todos assinaram. Restava identificar qual a instituição que faria a gestão desse projeto. A gente entendia que tinha que ser uma instituição com a reputação ilibada, que ninguém pudesse discutir, que ninguém pudesse ter dúvidas de que faria bom uso e que tivesse capacidade técnica para fazer gestão de museus. A partir de uma experiência similar que foi feita em Campinas, por uma colega nossa, que também teve essa ideia de aproveitar um espaço público para fazer um museu e falar sobre a questão racial. Ela tinha feito isso em parceria com a Unesco e deu essa dica. A gente fez contato com a Unesco, que topou o desafio e montou uma equipe espetacular, com profissionais extremamente competentes e dedicados, aos quais, se somaram outros profissionais que trabalham na área da cultura, da biologia, da comunicação, da arquitetura. Depois, se somaram aos representantes das comunidades tradicionais, para que pudesse haver de fato o envolvimento daqueles que são os protagonistas dessa história. E a gente está aí, nesse momento de construção coletiva desse Museu, que a gente espera que permaneça sendo sempre um espaço de construção coletiva, de visitação coletiva e de falar sobre o coletivo.

P – Ele é a oportunidade da gente reaprender. É tão importante, porque todas as conversas que eu tive até agora, tanto nos quilombos, nas aldeias, nos espaços caiçaras, a primeira coisa que me respondem, quando eu pergunto o que é ser quilombola, caiçara ou indígena, são as práticas coletivas. Automaticamente, falam que é sair para pescar junto, é costurar junto uma rede, é tudo feito junto. Então, a IlhaMuseu pode também ser uma amostra das coisas que a gente tem que reaprender. O que você gostaria que fosse? Porque ele ainda está em processo…

M – Acho que justamente por conta dessa minha vida, eu tinha um ano, quando meus pais entraram nesse trabalho com os povos indígenas, então eu tive esse privilégio de conviver, de dormir em aldeias, às vezes por uma semana, e poder beber um pouco da fonte de um outro modelo de vida. E aí, a gente conversa muito sobre isso e uma das expectativas que a gente tem, é justamente a partir desses novos modelos. Porque é isso hoje, quando se fala em patrimônio, por exemplo, a ideia de patrimônio é a da nossa sociedade, a posse, a propriedade. A gente não fala de território. Como Tadeu falou, o território não é dividido. Não tem o meu lote, o teu lote, o lote do vizinho. É um território coletivo. Tem o espaço da minha casa, onde eu planto alguma coisa, mas o valor daquele espaço não é um valor econômico, é um valor onde eu reproduzo o meu modo de vida, onde o meu grupo reproduz o modo de vida dele. E isso se espraia para diversas coisas. Por exemplo, a hora que eu vou fazer a minha rede, eu não estou fazendo a minha rede e o Tadeu está fazendo a rede dele. Nós que estamos de fora, olhando isso, falamos: “existem outros modos de vida, que podem sinalizar que um outro mundo é possível”. E aí, é nessa linha que a gente pensou muito de buscar aprender com esses povos originários. Aprender a partir dos diferentes modos de vida desses grupos, de outras maneiras de viver e de outros valores, podem orientar a nossa existência, que não aqueles que nós aprendemos desde pequeno. Então, além da rede, além do território que não é individual, a gente comenta muito, por exemplo, a educação. No nosso modelo, eu educo o meu filho, você educa o teu e cada um educa o seu filho. Numa aldeia, por exemplo, os filhos são educados por todos. A gente recebeu uma denúncia de trabalho infantil, por exemplo, porque os indígenas estariam explorando as crianças que estavam trabalhando. E aí, a resposta que a indígena nos deu, quando fomos conversar, foi que achava estranha a nossa preocupação, porque “estamos ensinando os nossos filhos a trabalhar. Essa é a forma como ganhamos o nosso sustento”. Por outro lado, ela também achava estranho que nós deixássemos os nossos filhos dormindo na rua. Porque, numa aldeia Guarani, por exemplo, não existe a figura da mãe e da tia, não existe tia, não existe sobrinho. Todas as mulheres são mães de todas as crianças daquela comunidade. Todos os pais são pais de todas as crianças. Então, se eu vejo uma criança em situação de perigo, aquela situação de perigo é minha responsabilidade, independente de eu ter parido aquela criança ou não. E a gente aqui não, a gente entende que, por exemplo, uma criança estar na rua não é minha responsabilidade, isso é uma responsabilidade do Estado. Então, diferentes formas de olhar para as diferentes facetas da nossa vida, a partir desses povos, poderiam jogar luz para refletirmos um pouco sobre como a gente está levando a vida. Quais são os valores que orientam a nossa vida em comunidade? Será que é sustentável essa vida? Uma das coisas que a gente propõe também, é a reflexão a respeito das mudanças climáticas. Será que esse nosso modelo de vida, frente a esse desafio que a gente já está vivenciando, será que eles ornam, como dizem em algumas dessas comunidades? Então, um pouco da ideia desse museu é isso também. Um museu muito dinâmico, que traga esse dinamismo do modo de ser de outros povos, para que nós possamos avaliar e refletir sobre a possibilidade de nos espelharmos um pouco nisso, como talvez a única chance que a gente tenha de sobrevivência, enquanto espécie.

P – Tadeu, queria te ouvir também sobre suas expectativas pra esse futuro, agora que passou essa fase tão importante, tão emblemática e que está em construção mesmo, em termos de Justiça, de sentimento de vocês e das próprias comunidades.

T – Então, eu vou mais uma vez fazer coro com o que dizia Maria. A nossa expectativa é que o museu possa refletir todas essas questões que a gente está conversando e que podem ser resumidas nessa ideia de que sociedade nenhuma pode se estruturar de forma justa, a partir da ideia de que a gente tem que olhar para o mundo de forma individual. A expectativa, de fato, é que cada visitante do museu, a partir do conhecimento dessas diversas formas de viver o mundo, possa sair um pouco mais aberto para um espírito coletivo. A gente tem assistido um discurso muito forte de “o meu direito”, “o meu desejo”, “a minha vontade”… A gente assistia isso na pandemia, a gente assistia aquele discurso, “mas, e o meu direito de não me vacinar?”, enquanto havia uma necessidade coletiva de uma política sanitária, onde eventualmente você podia não precisar, mas a coletividade precisava. A gente vive esse desafio das mudanças climáticas e não há solução que não passe por a gente abdicar de algumas coisas que deixam a nossa vida um pouco mais confortável, mas que do ponto de vista coletivo, são insustentáveis. Então, todos esses grandes desafios, pelos quais a nossa sociedade moderna passa, estão relacionados a esse tensionamento entre o individual e o coletivo. Evidente que o indivíduo tem que ter os seus direitos fundamentais garantidos, a sua individualidade garantida, seus direitos de personalidade e tal, mas a visão de mundo ela precisa ser mais mais coletiva e menos individual e, como disse a Maria, a gente pode aprender com os povos originários um pouco mais sobre a visão coletiva, sobre a terra, sobre a natureza. A gente pode aprender com os europeus que vieram para cá, um pouco mais sobre esse conceito de República, que a gente incorporou na teoria, mas tanto aqui como lá, talvez tenhamos dificuldade de praticar a ideia da coisa pública. De que as instituições são públicas. De que o patrimônio ambiental é público. De que a Lei tem que ser respeitada por todos, em benefício da coletividade. A gente pode aprender um pouco com cada um desses povos sobre essa ideia do respeito à coisa pública, nessa perspectiva ampla que a gente está conversando.

P – É a última pergunta. Eu vou juntar com a primeira resposta que vocês me deram, porque eu estou achando tão fantástico. Vocês são moradores aqui do território, do Litoral Norte, têm filhos e, juntando toda essa trajetória que vocês contaram agora, como é que esse resultado, no momento que está agora, conversa, por exemplo, lá com a Maria pequena, vendo os seus pais trabalhando com isso; e que tipo de satisfação te dá? E a mesma coisa, Tadeu, te perguntar daquele propósito do jovem que vai fazer direito para ajudar. A gente vê que vocês têm grandes vitórias, dentro da trajetória profissional de vocês até agora, mas essa como a gente falou é muito emblemática. Então, com tudo isso, que você também são moradores desse território, com filhos, pensando nesse futuro… Qual é a sensação agora, de estar neste momento?

M – É uma sensação de dever cumprido. Claro que sempre vai ter o que fazer, a gente ainda tem muito por fazer e também a gente não consegue consertar o mundo. É muito difícil. Acho que a própria dinâmica da história é essa. A gente vai estar o tempo inteiro vivendo esse tensionamento e é isso que faz a história acontecer. Mas quando a gente vê uma vitória dessas, a coisa acontecendo, o projeto pronto, tantas pessoas envolvidas, dá uma sensação de “que bom que pelo menos, nesse caso, a gente conseguiu colocar as coisas no lugar certo”. E olhando pra Maria lá, pequenininha, é uma sensação de continuidade. Acho que é um pouco isso. É a sensação de que eu aprendi ali, eu consegui internalizar todo esse aprendizado que a gente vai tendo em cada experiência, em cada reunião que a gente vai para uma comunidade caiçara, com a Fundação Florestal, com o ICMBio, com a Unesco, com cada um que a gente conversa, a gente vai crescendo um pouquinho e eu vejo que vai se somando, e a coisa vai tomando cada vez um contorno maior. Então é uma sensação de que eu pertenço a algo que, para mim, me dá sentido, que sempre deu sentido à minha vida profissional e na expectativa de que, daqui há um tempo, eu não vou estar mais, porque a gente não é eterno, mas que outros, assim como a gente, está dando continuidade a uma história que começou 35 anos atrás, tanto no MP Estadual; como há 10 anos atrás no MPF. Que seja dada continuidade pelos colegas que virão, pelas outras pessoas que virão na sociedade civil, na Fundação, não necessariamente na Ilha das Cabras, mas em outros casos. E que os estagiários que acompanham esse caso, lá na frente, sejam promotores, procuradores e participantes de projetos como esse da Unesco. Uma outra referência para a gente no Ministério Público é a professora Élida, do curso de formação de agentes políticos. Ela fez uma analogia que era justamente a metáfora de uma procissão. Se você quiser até falar, você que estava lá, você que me contou essa história. Se quiser contar…

T – Ela dizia que o mais importante do que liderar a procissão é acender uma vela e carregá-la um pouco por um tempo. Uma hora ela vai se apagar e vai vir uma outra pessoa atrás, com uma outra vela e vai seguir a caminhada.

M – Antes dessa vela se apagar, várias outras se acenderão a partir dela e vão se apagar em algum momento. Então, que a gente possa ser mais uma vela, nessa busca por implementar de fato o princípio Republicano, que é o projeto que o Tadeu escreveu, o Res Publica, que é a República Federativa do Brasil. Que a gente possa de fato, não só no papel, não só na Constituição, mas na nossa vida prática, ser uma República.

T – Olhando para trás, o que tem de preservado no garoto que queria ser Promotor de Justiça, é essa vontade de me dedicar a promover Justiça, como o próprio nome diz. Mas, com certeza, o que eu entendo por Justiça hoje é completamente diferente do que eu entendia, quando eu entrei. E foi dessa caminhada e desses encontros, encontro com a Maria, encontro com o Marcelo Goulart; do encontro com os professores do curso de Museologia, que eu fiz depois na PUC; do encontro com vocês, do projeto da Unesco; de quando eu fui lá na Ribeirão Silveira, conhecer a aldeia; de quando eu conheci os representantes das comunidades caiçaras. Toda a família da Maria, que me influenciou demais, a Jussara e o Humberto Capucci que trabalhava com os indígenas. Enfim, desses encontros, a gente vai ganhando novas perspectivas. E a gente carrega elas até aqui, até esse projeto, para que seja apropriado também por outras tantas pessoas e sigam levando para caminhos que a gente nem pode imaginar. O importante é que continue vivo, que continue fomentando o pensamento crítico. E aonde vai chegar, a gente não sabe.

P – A caminhada é coletiva também.

M – Ela só acontece, se ela for coletiva. Aliás, uma das razões pelas quais esse projeto começou em conjunto, foi isso. A gente falou, sozinhos é difícil demais. Juntos, já não foi fácil! Então, mesmo dentro do Ministério Público, se somaram, além do Tadeu e eu, a doutora Denise, Sub–Procuradora Geral da República, em Brasília, que nos acompanhou nos despachos com os ministros, que já estavam nesse caso. Enfim, é coletiva.

T – Me lembra muito bem de quando fui julgar um recurso, a gente foi conversar com os desembargadores do Tribunal de Justiça, deu para perceber que eles se apropriaram de fato, daquilo que a gente estava tentando comunicar. Muita gente! De fato, é uma construção coletiva sem dúvida nenhuma.

M – E só acontece por isso. E o museu também, só está acontecendo porque é coletivo, e não só coletivo, ele é diversamente coletivo. Porque você ter um coletivo homogêneo, não adianta nada. Então, a diversidade desse projeto, das pessoas que estão envolvidas, dos consultores. A gente tem que falar muito do Luís, que está liderando esse trabalho. Ele é um maestro e está saindo uma sinfonia maravilhosa. E o Dr. Ricardo, que sempre nos fez essa provocação. Tanto que, quando teve a desocupação da Ilha das Cabras, ele já não era mais Juíz em Caraguatatuba, mas a gente ligou para ele e brincou: Doutor Ricardo, missão dada, missão cumprida! E não foi fácil, foram 10 anos. Desde o primeiro dia que a gente conheceu o Dr. Ricardo, ele falou: “tem um caso aqui que a gente está bastante incomodado. Inclusive, eu me dou por suspeito, se tiver que julgar, porque realmente já me manifestei muitas vezes sobre isso”. Então, era realmente algo que incomodava a muitas pessoas. Todas essas provocações fazem parte desse coletivo, que hoje está nesse resultado.

P – Muitíssimo obrigada por esses depoimentos. Vão ser muito valiosos para a gente conhecer todos esses bastidores. Bastidores não, porque foi bem publicado, mas juntando com propósitos e com a vontade pessoal de cada um de vocês. Muito obrigada por essa entrevista.

M – A gente agradece também a oportunidade de poder contar um pouquinho dessa história, que a gente acha que vai ser contada um pouco no Museu também, não é? Não com tanto personalismo, mas que vai estar lá para todo mundo poder saber.

 

 

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